sábado, 2 de abril de 2011

Palavras que podiam ser minhas

Kirsten Dunst

Eu não ia linkar o texto todo. Queria linkar apenas uma parte. Mas a verdade é que não consegui fazer isso, porque o texto ilustra, do princípio ao fim, aquilo que eu penso em relação a tudo isto.


Ligo a tevê nas notícias e só ouço falar em FMI, crise, taxas de juro, ratings, os raspanetes da Merkel, o gozo dos ingleses, os conselhos dos irlandeses, que somos o "lixo" da Europa, que vamos falir, soçobrar, desaparecer do mapa, kaput. Os jornalistas falam da crise económica como se noticiassem o tsunami no Japão, uma horrível desgraça natural da qual não vão restar sobreviventes, embora por enquanto esbracejemos vivos por entre os escombros da derrocada, e apareçamos em directos escabrosos feitos de tripas e sangue. Ora, eu saio à rua e parece-me que a vida continua mais ou menos como sempre. Estamos no geral mais pobres, é certo, temos menor qualidade de vida, compramos casas com menos assoalhadas, mais longe dos sítios onde trabalhamos, levantamo-nos mais cedo. Temos dificuldades, muitos de nós desempregados, alguns porque não querem lavar escadas, outros viciados no subsídio. Na rua, as pessoas continuam a entrar nas lojas, as mulheres a cobiçar o mesmo único top. Compramos menos, compramos pouco, mais marcas brancas, menos gourmet, cortamos nos pequenos luxos. Menos livros, menos revistas, mas os carros continuam a enxamear a cidade nas horas de ponta, apesar dos combustíveis. Gente é despedida mas gente também é contratada; vendem-se casas, arrendam-se outras, menos dinheiro passa entre mãos. O sol nasce e põe-se, os nossos putos vão e vêm das escolas, das creches. Muitas são públicas - e são boas. Os mais velhos têm as mesmas crises vocacionais que tínhamos com a idade deles, mas muito mais escolha e um ministério com computadores que os ajuda a escolher. Têm o Erasmus, os voluntariados, a net que nunca os deixa sozinhos. Vivemos numa democracia e eu não tenho de usar burka nem chador quando saio à rua. Ganho menos, não tenho a vida fácil que tinha há uns anos (por outras razões que não apenas a crise), mas a praia continua lá, o mar, a areia, as arribas e é tudo de graça. Há filmes e séries giras, cada vez mais sítios para sairmos à noite, esplanadas onde podemos beber um café por menos de um euro e gozar a vista, cheirar o sol, rir com um amigo. Continuamos a apaixonar-nos; pelo novo namorado, pela filha que nasce, pelo sobrinho, pela vizinha do lado, pelo cão que trouxemos do canil. Andamos cansados, temos de dar mais de nós para receber o mesmo (ou menos ainda), mas temos hospitais, seguros de saúde, parques infantis, ciclovias. As rádios dão-nos música, chateamo-nos com o chefe, com a puta da colega que nos lixa, saímos à porta para esfumaçar, inspiramos fundo, voltamos a entrar. Trabalhamos em merdas de que não gostamos mas paciência, é assim com quase todos. O manel da tasca continua a servir copos de três e amarguinhas aos agentes da ordem, apesar da carga iminente do FMI. As administrativas continuam a falar do namorado da alexandra lencastre e do cristianinho. E apercebemo-nos de que o histerismo televisivo-jornalístico que nos prevê o armagedão é um bocado apenas isso mesmo: histerismo, obsessão, gritaria, politiquice rasteira à desgarrada, dia após dia e sempre no prime time. Tudo amplificado pelos jovens precários que querem a luta e que se acham únicos e singulares na sua normal incerteza de princípio de vida; e pelos políticos, que incutem no povo esta novel fobia por abstracções cujo significado este mal entende, feitas de siglas, acrónimos e de estrangeirismos que seguramente nos farão mal, muito mal. Andamos com medo, mas não sabemos exactamente de quê. E eu, apesar de estar quase nas lonas, de lamber as montras e de pouco ou nada poder comprar para além daquilo com que faço questão de mimar os meus, acho que é importante ter isto em perspectiva: não obstante os ai-jesus europeus e do mundo em geral em relação ao suposto lixo que é Portugal (e que nos são diariamente gritados aos ouvidos), temos carros, ruas, jardins, pessoas, mulheres de mini-saia, bebés nas cadeirinhas, autocarros, mini-pratos, menus do dia, jornais de ontem, salas de cinema, pipocas, imperiais, pão fresco - e ainda montras para lamber.


Escrito por Sofia Vieira, no seu blogue Controversa Maresia


16 comentários:

macaca grava-por-cima disse...

tão bem escrito, tão verdadeiro, tão simples... um arrepio e uma lágrima a querer saltar ao ler este texto. obrigada pela partilha kitty

Sofia disse...

Adorei o texto não poderia estar mais verdadeiro.

Tamborim disse...

Bem escrito, mas simplista. O problema não é só a actualidade - e a actualidade é lancinante. É o perverso sistema em que vivemos enquanto "lambemos" montras e pensamos sossegadamente que a vida continua. As coisas podiam ser diferentes. Muito. Mas isso custa muito e requereria, desde logo, que não nos embalassemos 24 horas por dia.

Tita Xana disse...

Texto simplista e moralista, típico da classe média que ainda está "benzinho" na vida. Para além dos que não querem lavar escadas e dos que recebem subsídios (muitos porque descontaram portanto têm direito), também os há, os outros desempregados e os futuros desempregados. Não é preciso chegar ao extremo de dizer que Portugal é um lixo, mas esta atitude conformista demonstrada no texto é em parte culpada das coisas não estarem melhores, e de haver cada vez mais gente a passar fome neste cantinho à beira-mar plantado.

Fashion Faux Pas disse...

Não gosto da escrita a roçar o sobranceiro, e menos ainda gosto do simplismo de quem se acha tão superior aos outros - as administrativas a falarem da Alexandra, os que não têem emprego porque não querem lavar escadas - quando a realidade que eu vejo á minha volta é TÃO diferente do que está aqui descrito. Quem me dera a mim que me contratassem para lavar escadas. Quem me dera a mim ter um emprego de administrativa. Quem me dera a mim poder perder tempo a lamber montras.

Ana Pinto disse...

Muito bom, gostei.

Ana disse...

Que engraçado...hoje de manhã li este texto no Blog da Sofia e pensei o mesmo... "eu diria estas palavras...!" É o retrato do que vivemos...

Carla Marialva disse...

Gostei

Mary disse...

Máinada. Novamente.

Gi disse...

Não escreveria melhor ;)

Miss D disse...

http://www.youtube.com/watch?v=QiY8QB1fNAY&feature=player_embedded - deixei à pouco este link no meu blog.
Não suporto lamentações do tipo "ai que a minha vida está tão mal, já não posso comprar o último modelo de telemóvel da Apple, nem ir a noite toda pelos bares e discotecas fora, nem comprar os vestidos que namorei ontem." Vindas de pessoas que não fazem puto da vida e vivem indignadas por serem licenciadas e não têm um cargo como chefe de serviço...
Mas, e sublinho este mas, que é facto que nem sonhamos com o que se passa na realidade com a Economia e as Finanças do nosso País, é!
E as coisas vão continuar assim, a caminhar para o buraco sem que ninguém se preocupe, porque o povo português é mesmo este, enquanto houver dinheiro para os pequenos "vícios", está tudo bem.

Descalça disse...

É óbvio que, apesar da crise, a vida (para muitos) ainda continua mais ou menos igual, mas o que aqui li é a visão de quem só olha para o seu umbigo.

Rabbit disse...

Sim, é um texto muito bem escrito, mas que ilustra na perfeição a pequenez do povo português. Até rimei e tudo! Contentamo-nos com pouco, achamos que é normal vivermos na precariedade, conformamo-nos com a casa pequena e longe do trabalho, não nos importamos de trabalhar o dobro das horas pelo mesmo salário, não queremos saber se o vizinho do lado está no desemprego, desde que não nos toque a nós... E não gostamos do trabalho que fazemos, que nos paga e trata mal, mas tudo bem porque no fim de semana vamos beber a jola e o café mais baratos que no resto dos países da Europa. E é assim que Portugal vive, é nessa tristeza que o povo se cria e sobrevive. E para mim, foi preciso sair, para bem longe, para perceber que a viva pode ser muito mais do que sobreviver e conformar e aceitar. E que há melhor.

Violeta disse...

Excelente! :)

Unknown disse...

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Anônimo disse...

Despretensioso e sincero.

Infelizmente, a realidade é assim, mas, felizmente, também não é assim tãããão má.